domingo, 6 de julho de 2014

Almoço prolongado


O Jorge Passos lembrou que todos temos alguma historieta para contar e que devemos partilhá-la. É verdade. Eu não acredito que faltem episódios que não conhecemos e que gostaríamos de ver espelhados no nosso blogue. Eu já aqui referi alguns e hoje deixo-vos mais um. Escrevam. Participem. Vale a pena.

Almoço prolongado



Medelim, 30 de Março de um ano da primeira metade da década de 60. Era um ano em que o mês de Março veio quente e o verão madrugou.

Como de costume, eu e mais uns quantos fomos almoçar para a ermida do Senhor do Calvário como fazíamos todos os dias. Mesmo quando fazia vento e chuva nós íamos para lá. Não quando chovia demasiado, mas era regra.

Não me lembro quem estava nesse dia mas éramos uns seis ou sete e almoçámos sobre uma parede à sombra de um sobreiro. Não sei ao certo quanto tempo tínhamos para almoçar mas era o suficiente para não haver pressa em voltar, até porque os que almoçavam no colégio pediam a bola à D. Irene, jogava-se futebol no átrio dos rapazes, e era porque havia tempo.

Deu-nos uma volta à cabeça e virámos para o lado errado na hora de regressar. Caminhámos em direcção à Bemposta para uma ribeira que vinha dos lados de Aldeia de João Pires e seguia para Proença. Não sabíamos onde mas acreditávamos que haveria um bom lugar de água e sombra para quebrar a monotonia das aulas, nunca pensando no tempo que isso nos ia custar. Mas isso também era de menos porque se chegássemos com algum atraso, inventaríamos uma desculpa qualquer ou não inventávamos nada que era o mesmo.
Ribeira de Medelim - Clique para ampliar
A Ribeira a jusante da ponte entre Medelim e Bemposta

E demos com uma pequena represa na ribeira que vinha mesmo a calhar. Água limpinha e funda e em menos de um fósforo estávamos no banho, nus, porque não havia equipamento nem isso nos importava. E numa algazarra de desalmados. Ficámos preocupados quando nos apareceu, vinda de uma horta ao lado, uma velhota de sacho no ar, de forma agressiva desancando verbalmente nos desavergonhados que não tinham respeito pelas pessoas. É que nós já não éramos propriamente crianças e isso notava-se. Respondemos que ela não se metesse, que fosse à vida dela, que não estávamos a fazer mal nenhum, que tínhamos calor e sei lá que mais. Ameaçou que ia fazer queixa ao colégio, ao que não ligámos nada, mas fez-nos lembrar que tínhamos de regressar.

Já a tarde era tarde e deparámos com as ruas de Medelim absolutamente sossegadas. Nunca eu sentira aquele silêncio pesado na rua. Quase que metia medo. Talvez o medo fosse outro. Parecia que o céu se abatia sobre nós, já com alguma dificuldade em arcar com as consequências.

E as consequências chegaram. No próprio dia e dias depois. É que a velhota fez mesmo queixa no colégio e foi fácil saber quem é que naquele dia faltou à primeira aula da tarde. Mas valeu a pena. Pelo menos para ainda hoje recordar.


   
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