O Jorge Passos lembrou que todos temos alguma historieta para contar e que devemos partilhá-la. É verdade. Eu não acredito que faltem episódios que não conhecemos e que gostaríamos de ver espelhados no nosso blogue. Eu já aqui referi alguns e hoje deixo-vos mais um. Escrevam. Participem. Vale a pena.
Almoço prolongado
Medelim, 30 de Março de um ano da
primeira metade da década de 60. Era um ano em que o mês de Março veio quente e
o verão madrugou.
Como de costume, eu e mais uns
quantos fomos almoçar para a ermida do Senhor do Calvário como fazíamos todos
os dias. Mesmo quando fazia vento e chuva nós íamos para lá. Não quando chovia
demasiado, mas era regra.
Não me lembro quem estava nesse
dia mas éramos uns seis ou sete e almoçámos sobre uma parede à sombra de um
sobreiro. Não sei ao certo quanto tempo tínhamos para almoçar mas era o
suficiente para não haver pressa em voltar, até porque os que almoçavam no
colégio pediam a bola à D. Irene, jogava-se futebol no átrio dos rapazes, e era
porque havia tempo.
Deu-nos uma volta à cabeça e
virámos para o lado errado na hora de regressar. Caminhámos em direcção à
Bemposta para uma ribeira que vinha dos lados de Aldeia de João Pires e seguia
para Proença. Não sabíamos onde mas acreditávamos que haveria um bom lugar de
água e sombra para quebrar a monotonia das aulas, nunca pensando no tempo que
isso nos ia custar. Mas isso também era de menos porque se chegássemos com
algum atraso, inventaríamos uma desculpa qualquer ou não inventávamos nada que
era o mesmo.
A Ribeira a jusante da ponte entre Medelim e Bemposta |
E demos com uma pequena represa
na ribeira que vinha mesmo a calhar. Água limpinha e funda e em menos de um
fósforo estávamos no banho, nus, porque não havia equipamento nem isso nos
importava. E numa algazarra de desalmados. Ficámos preocupados quando nos
apareceu, vinda de uma horta ao lado, uma velhota de sacho no ar, de forma
agressiva desancando verbalmente nos desavergonhados que não tinham respeito
pelas pessoas. É que nós já não éramos propriamente crianças e isso notava-se.
Respondemos que ela não se metesse, que fosse à vida dela, que não estávamos a
fazer mal nenhum, que tínhamos calor e sei lá que mais. Ameaçou que ia fazer
queixa ao colégio, ao que não ligámos nada, mas fez-nos lembrar que tínhamos de
regressar.
Já a tarde era tarde e deparámos
com as ruas de Medelim absolutamente sossegadas. Nunca eu sentira aquele
silêncio pesado na rua. Quase que metia medo. Talvez o medo fosse outro.
Parecia que o céu se abatia sobre nós, já com alguma dificuldade em arcar com
as consequências.
E as consequências chegaram. No
próprio dia e dias depois. É que a velhota fez mesmo queixa no colégio e foi
fácil saber quem é que naquele dia faltou à primeira aula da tarde. Mas valeu a
pena. Pelo menos para ainda hoje recordar.